”A graça de Deus apareceu, trazendo salvação para todos os homens, que nos ensina <…>
”A graça de Deus apareceu, trazendo salvação para todos os homens, que nos ensina <…> a viver» (Tt 2, 11-12). Esta passagem do Novo Testamento fala de Cristo como uma graça personificada que ensina o homem a viver. Se o Espírito é o grande mestre da vida cristã, a Escritura, que é o sacramento da vontade e da Palavra de Deus, pode ser entendida como o elemento que transmite este ensinamento.
Entenda-se aqui a Escritura interpretada no Espírito Santo, quando ela é o coração da oração. A lectio divina é a arte que procura aplicar na existência os textos da Escritura. Ela se apresenta como uma ferramenta preciosa que pode ajudar a superar o “abismo” frequentemente encontrado em nossas igrejas entre fé e vida, entre espiritualidade e vida cotidiana. Ela aparece como uma hermenêutica existencial da Escritura que, levando o homem a olhar para Cristo, a buscá-lo através da página bíblica, leva-o a fazer com que sua existência dialogue com o rosto revelado de Cristo, podendo, assim ver o dia a dia iluminado com nova luz.
Os quatro degraus da lectio divina – lectio, meditatio, oratio, contemplatio – representam um aprofundamento progressivo do texto bíblico, no qual o ato de ler torna-se um encontro com o Senhor vivo, um diálogo com Ele, exposição da própria vida à luz do Cristo que ordena à existência do fiel. O processo implementado pela lectio divina é um caminho “muito humano” que leva da escuta ao conhecimento e, deste, ao amor. Na leitura, lectio, trabalha-se com o esforço de sair de si para superar a distância cronológica e cultural do texto; na meditação, meditatio, procura-se aprofundar o conhecimento, busca-se a mensagem central do texto, abre-se o coração para a face de Cristo, que brota da página bíblica; na oração, oratio, a resposta à Palavra se faz oração em que se assume um compromisso com a Palavra lida e meditada.
O plano de oração é o mesmo plano da vida: a vida ética e a fé não podem ser desarticuladas, pois estão intrinsecamente ligadas. Isso leva a uma conclusão fundamental, que a eficácia da Palavra de Deus contida na Escritura, manifesta-se antes de tudo no plano do ser, muito antes daquele do fazer.
Daí chegamos na contemplação, contemplatio que indica um nível de comunicação, intraduzível em palavras: silêncio, lágrimas, presença do Amado, discernimento da inefável presença do Senhor. Indica ainda, como vai operando em nós o Espírito que habita a Palavra: ele cria no fiel a longanimidade, a paciência, a unificação interior, o discernimento, a capacidade eucarística, a compaixão por todas as criaturas, isto é, a dilatação do Amor.
A lectio divina opera a passagem da Palavra na vida, acima de tudo desta forma: fazendo do homem um ser capaz de escuta, portanto, um homem de fé. É ela uma leitura que requer a capacidade de interiorização, para que a Palavra crie raízes no coração humano; e, para isso, exige-se perseverança, renovação diária da atitude de escuta, capacidade de durar, de permanecer no tempo, porque a fé não é a experiência de um momento ou, de uma hora de vida, mas abraça a totalidade da existência; requer luta espiritual, isto é, a capacidade de permanecer apegado à Palavra ouvida e de preservá-la como um bem precioso, sem trocá-la por aqueles bens ilusórios, mas sedutores, que são os ídolos de sempre. É deixar-se envolver pelo plano da salvação.
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